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O Caso da Boate Kiss – Uma História (quase?) Sem Fim

Autor: Alisson Ricardo – Engo. civil e Diretor técnico da AMEI

 

Há 7 anos, 1 mês e 18 dias, no dia 27 de janeiro de 2013, o Brasil e o mundo assistiam em transmissões ao vivo, o incêndio da Boate Kiss, além do resgate das vítimas.
Hoje, 16 de março de 2020, seria o 1º julgamento do 1º dos 4 réus: Luciano Bonilha Leão, produtor musical da Banda Gurizada Fandangueira, que acendeu o artefato pirotécnico e o entregou ao vocalista da banda, Marcelo de Jesus dos Santos, durante a apresentação no palco.
O julgamento foi suspenso até que se determine nova data, conforme a solicitação do MP e da Associação das Famílias das Vítimas, pelo fato de que houve desaforamento dos outros 3 réus e assim, para que se haja a unicidade do julgamento como determina o Código Penal para o caso em que se enquadra o incêndio da Boate Kiss e não seja, posteriormente, anulado o julgamento por possível parcialidade, já que o mesmo ocorreria na cidade de Santa Maria além de que, o julgamento deve ser realizado com os 4 réus juntos não só pela unicidade, mas por outras questões óbvias.
Sempre que se fala em segurança contra incêndio é inevitável não se falar na Boate Kiss. Ainda mais com os desdobramentos judiciários que ocorreram, que apesar da comoção nacional e internacional, um processo que se arrasta lentamente dos quais podemos destacar alguns pontos, no mínimo intrigantes: foram indiciados pela Polícia Civil 18 pessoas; dessas 18, foram aceitas como réus apenas 8 (todos os agentes públicos indiciados tiveram as acusações arquivadas); as famílias das vítimas processaram alguns dos Bombeiros que atuaram no combate ao incêndio da boate; os procuradores do MP arquivaram 4 processos (duas sócias minoritárias da boate, mãe e irmã do sócio com apelido de “Kiko”) e ficaram somente os 4 atuais que estão indo a julgamento; os procuradores do MP processaram 5 pais de vítimas por calúnia e difamação; os Bombeiros que atuaram no combate processados pelos pais, foram absolvidos; 3 dos pais processados pelos procuradores, foram absolvidos e 2 aguardam julgamento; desaforamento de 3 dos 4 réus; recursos sem fim para a postergação das datas dos julgamentos; 1º julgamento suspenso por tempo indeterminado para se manter a unicidade do julgamento; nova data e local do julgamento dos 4 réus, talvez, será definido no dia 18 de março de 2020.
A catástrofe da Boate Kiss colocou a população brasileira em alerta pois, antes, vivíamos na ilusão de que nada pegava fogo no Brasil, o que ainda não mudou na grande maioria. Os acontecimentos do Andraus, Joelma e Canecão Mineiro, já estavam caindo no esquecimento. E agora podemos “engrossar o caldo”, com: a Boate Kiss em si, Ultracargo, Creche Gente Inocente, Museu da Língua Portuguesa, Ed. Wilton Paes de Almeida, Museu Nacional e Ninho do Urubu. Muito poucos ainda engrossariam esta lista citando o Gran-circus Norte Americano, catástrofe de incêndio que ocorreu em Niterói, em 1961, o qual é recomendável ler o livro documentário-histórico-jornalístico: “Gran-Circus Norte Americano, O Espetáculo Mais Triste da Terra”, do jornalista Mauro Ventura. Pasmem! Foram mais de 350 mortos em números oficiais, isso porquê as autoridades daquela época param de contar. Mas a estimativa, “num chute pra baixo”, é de 1.500 mortes. Talvez 2.000.

A segurança contra incêndio é uma área extremamente multidisciplinar inimaginável, por quem não está envolvido diretamente com a mesma, por atuar em todas as outras áreas, sem exceções, e todas as áreas afetarem direta ou indiretamente a segurança contra incêndio. Vai desde de todas as engenharias, passando pela medicina, administração, física, química, psicologia, neurociência, jurídica, idiomas, designer, artística, sócio-econômicas, segurança (em todos os sentidos), cultural e todas as demais.

Na AMEI é consenso entre os seus associados e, acreditamos, que em todas as outras entidades, que a catástrofe da Boate Kiss se for estudada com a devida profundidade e seriedade teremos ao menos 75 anos de estudos e pesquisas, em cada área e subárea! Será uma fonte interminável de artigos técnicos, TCCs e teses, principalmente, na segurança contra incêndio.
O que mais estarrece os associados da AMEI são os julgamentos de não ocorrerem, os desdobramentos serem cada vez (im)previsíveis tendendo a impunidade (?), o processo judicial se arrastar quase que indefinidamente e por estar sob sigilo jurídico, não sendo possível ter o acesso ao laudo da perícia do processo, peça fundamental para saber o que de fato foi constatado.
A nós da AMEI, demais profissionais e estudiosos da comunidade de segurança contra incêndio, o que temos são “migalhas” após muito peneiramento e a uma boa triagem do que muito foi noticiado pelas mídias, jornais e revistas, algum artigo aqui e outro ali, o qual podemos supor algumas questões, levantar hipóteses e fazer comparações com os critérios técnicos exigidos por Normas, Legislações da época e as atuais, o que, como dizemos em Minas: “Dá pano pra manga”.
O que também é unânime na AMEI que se solidariza com as famílias das vítimas da Boate Kiss e muito nos entristece é processo judicial que não vislumbra nenhum horizonte de chegar ao fim tão brevemente, já que até o momento estamos só falando do julgamento em 1ª Instância. Se compararmos com o Canecão Mineiro, catástrofe ocorrida em Belo Horizonte em 24 de novembro de 2001, foram 15 anos até a sua conclusão em 3ª Instância em 2016 e mesmo assim, porquê houve indeferimento do recurso nessa última Instância. Além disso, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) que também era réu junto com os proprietários do Canecão, foi condenada, bem como a própria PBH abriu sindicância interna onde vários de seus agentes públicos foram punidos com a exoneração de seus cargos.


Em Santa Maria/RS o que se vê é “um jogo de empurra-empurra” de estratégias e articulações jurídicas na corrida do “não fui eu, foi o outro”, ao ponto que parece que vai chegar ao cúmulo de que foi a culpa dos pais das vítimas terem deixado os seus filhos irem para a balada na Boate Kiss e eles, os pais, virarem réus. O que seria mais do que incrédulo e inescrupuloso, muito mais além da imoralidade: uma desumanidade plena.
O livro da jornalista e escritora Daniela Arbex: “Todo Dia a Mesma Noite”, altamente recomendativo para qualquer pessoa e que deveria ser leitura obrigatória para nós que trabalhamos na área de segurança contra incêndio, têm em vários capítulos a visão e os depoimentos dos profissionais que atuaram no socorro às vítimas durante e pós incêndio da Boate Kiss. Mas aqui fica uma dica ou alerta: leia emocionalmente preparado, principalmente quem for pai, ou mãe, ou avô, ou avó, ou tio, ou tia, ou irmão, ou irmã, vai à flor da pele.
Esses acontecimentos só atestam quase que uma verdade: no Brasil ainda somos “fedelhos” na segurança contra incêndio, já que aparentamos nos recusar a “sair das fraldas”, pois vêm catástrofe e vai catástrofe, mesmo (com muita pena, sangue, suor e haja lágrimas) termos tido avanços nas Legislações e Normas, as regularizações para se obter o AVCB (Auto de vistoria do Corpo de Bombeiros) continuam sendo “empurradas com a barriga” pelos próprios Proprietários de quaisquer edificações e atividades, até mesmo públicas. Há muito o que se mudar, estudar, pesquisar e aplicar no Brasil; e uma vela no fim do túnel foi acesa quando a Lei Boate Kiss (Lei Federal nº 13.425/17) foi sancionada (com vetos polêmicos, para variar) em 2017, pelo ex-Presidente Michel Temer e recentemente, em 2019, com a Portaria nº 108/19 da Secretaria Nacional de Segurança Pública-SENASP, que traz o Plano Nacional de Segurança Contra Incêndio. A “esperança” realmente é a última que morre.
É consenso não só da AMEI, mas de toda a comunidade de segurança contra incêndio, que ainda há muitas “Boates Kiss” e “Ninhos do Urubu” que ainda vão ocorrer, só que dessa vez vão estar sob outra roupagem: talvez como uma escola, ou templo religioso, ou como um restaurante bacana, ou como uma sala de cinema, ou como um hospital tradicional, ou como um prédio residencial, ou como qualquer outra atividade e aí, quem sabe, talvez, sirva de “simancou” para que caia a ficha de nós brasileiros de que temos de não só a passar a ter consciência da segurança contra incêndio, mas de que é nosso dever aplicá-la.
Enquanto isso vamos aguardando o desenrolar das “cenas dos próximos capítulos” do julgamento da Boate Kiss e, por enquanto, temos de continuar a dizer as famílias das vítimas dessa catástrofe, com muito pesar em nossos corações: nossas sinceras condolências, “estamos juntos”, “Do Luto à Luta”.

Belo Horizonte, 16/03/2020.